quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Histórias

O despertador toca apenas uma vez e logo pára. Era o suficiente para acordar o seu sono leve e ele era rápido o suficiente para não deixa-lo tocar mais que o necessário. O som do relógio o irrita, mas era assim que tinha que ser. Desliga o aparelho ainda com os olhos fechados e estes assim permaneciam por mais alguns instantes. Sempre. Estica o braço até uma espécie de criado-mudo que fica paralelo a sua cama para pegar o controle-remoto e ligar a televisão. O barulho o ajuda a "acordar" e ainda ouve as notícias do jornal da manhã. Esse custo-benefício lhe parecia sempre tentador.

Pensa em se levantar. Pensa em ficar deitado. Acaba sentando na cama e ali  estagna por alguns segundos enquanto, aparentemente, toma coragem para finalizar o ritual de todas as manhãs. Levanta, vai até o banheiro, lava o rosto e escova os dentes na pia amarelada pelo tempo . Sempre toma banho depois de jantar para não precisar fazê-lo de manhã, quando o frio é mais intenso. Vai até o armário, pega a primeira camisa da pilha e veste. Vai até a sala e pega sua calça pendurada na cadeira do computador e veste. Lembra de voltar até o quarto para recolher a toalha molhada que dixara em cima da cama. Pega sua mochila e sai ansioso, mesmo que isso não seja transparecido em seus gestos.

Chega na padaria, come um pão com manteiga e toma uma coca-cola em garrafa. Não gosta muito de café pela manhã e, ao mesmo tempo, frequenta esta padaria pelo simples fato de ela ser a única no bairro que oferta a coca em garrafa de vidro, a qual aprecia sem precedentes desde o tempo em que o refrigerante era mais barato que gasolina. Terminada sua refeição, dirigi-se à fila do caixa. Um conhecido o cumprimenta com um tapinha nas costas. Nada lhe parecia mais odioso que um tapinha nas costas. Tira o dinheiro amassado de dentro da mochila para saldar sua dívida momentânea, não sem antes contestar o recente aumento no preço do pão com manteiga. Ao sair, reflete sobre a possibilidade de passar a comer pão com margarina, apesar de ter aprendido a venerar manteiga com sua mãe desde os tempos de criança. Deixa para decidir depois.

Anda alguns quarteirões até a estação do metropolitano. Seus passos são rápidos. A essa hora da manhã os trens e as estações estão lotados e espera-se mais para embarcar do que o tempo que leva para se locomover  até o seu destino. Ele sempre pensa nisso. E sempre pensa em comprar um bicicleta, mas teme o trânsito caótico da cidade. Sempre releva a possibilidade de acabar sofrendo um acidente fatal.

Ao chegar na estação, nota que algo diferente aconteceu. Dirige-se até um dos funcionários do metrô e indaga sobre o que se passava. A estação estava mais intolerável do que o normal. A resposta é curta e suficiente para fazê-lo regressar: "Trem hoje tá complicado, mano. Quebrou um comboio lá pros "lado"  do Jabaquara e não tem previsão de "arrumá" não. O povo tá no meio dos "trilho" lá e parece que vai "demorá" bastante". Hoje só de busão "memo". A falta de precisão da resposta o irritou tanto quanto o fato de esse imprevisto ter acontecido logo neste dia.

Sai da estação e compra um maço de cigarros. Tentava parar. Já não havia fumado depois do café-da-manã, mas pensou ser este o melhor momento para voltar. Enquanto o tabaco queimava, tentava achar uma solução para chegar ao seu destino, que hoje não era a faculdade. O tempo do cigarro foi o suficiente para decidir ir de ônibus, como sugeriu o guarda. Ele sabia que os ônibus estariam mais cheios que o normal, mas não aquele pandemômino que avistou há uns 20 metros distante dos seus olhos enquanto caminhava. O ponto parecia a 25 de março em véspera de natal. Os ônibus não conseguiam sair do lugar e, além de tudo, com os trens parados, o número de carros aumentaram a olhos vistos nas ruas. Com esse cenário, não exitou em dar meia volta em direção à estação novamente. Queria informações mais precisas. Chega e muda de ideia ao rever o inferno na terra. Vai até o banco, que ficava logo na esquina.

Caminha até o auto-atendimento e saca cerca de 50 reais, que fariam falta mais tarde. A alternativa que ele havia encontrado era sem dúvida, depois de atravessar o trânsito de helicóptero, a mais rápida e a única viável financeiramente. Foram 10 minutos até encontrar um ponto de moto-táxi. "Mano, tem aqui 50 pila pra você tocar o mais rápido possível lá pra norte, firmeza? Pro no Carandiru". "Firmão, mano." O taxista não se mostrou preocupado com o trânsito mais intenso da cidade.

No percurso uma ponta de arrependimento fura seu peito. A vida de motoqueiro em São Paulo não lhe pareceu das mais seguras. Teve medo durante todo o trajeto e, ainda, teve a certeza de nunca comprar uma bicicleta para andar nas ruas de São Paulo. No máximo no Ibirapuera dar umas voltas, pensou consigo. O taxista lhe deixou no carandiru, na parte exatamente oposta àquela que fica logo de fronte à linha do metropolitano paulista. Fez isso para se esquivar ao máximo das avenidas principais que, nessa altura, teria congestionamento até de moto. Ele contornou todo o presídeo até a outra fachada paralela. Já passava das 10 horas quando chegou. Ele não conseguiu esperar seu "irmão" na porta; quando chegou ele já estava sentado do lado de fora da penitenciária, com uma pequena maleta que guardava o pouco que lhe restou depois de 8 anos de cadeia. 

A história tem um lado mais bonito do que feio. Amigos desde a infância, moradores do Tatuapé e vizinhos, eram considerados irmãos um pelo outro desde sempre. Uma certa vez, um assaltante entrou em sua casa desarmado, portando apenas uma espécie de punhal. Rendeu sua mãe e seu pai não estava em casa. Ele conseguiu ver tudo isso sem ser percebido, pois estava no banheiro e o basculhante do cômodo dava diretamente na cozinha, onde tudo se passava. Desnorteado, foi até o quarto de seus pais, pegou a arma que fica sempre com o tambor carregado, refletiu por alguns segundos até parar de ouvir os gritos de sua mãe. Nesse instante ele caminha até a cozinha, onde o bandido colocava uma mordaça na vítima. Nessa altura o assaltante já não empunhava mais a faca, uma vez que, pensando só estar a mulher na casa, já havia dominado todos do recinto. Ao chegar, com a arma apontada para a parte superior da cintura do bandido, lhe intima a soltar sua mãe: "solta ela ou mato você". O bandido não temeu o rapaz de 16 anos. Correu atrás de seu punhal. Ouve exitação do tiro e a faca foi pega, mas o desconhecido caminhou na direção da dona-de-casa e então se ouviu o estrondo. Aí que entra Judas, seu melhor amigo e vizinho. Como seu amigo era menor de idade, os problemas recairiam não somente nele, mas em seu pai, que sofria de uma série de problemas respiratórios. Judas assumiu a autoria do tiro e foi preso na casa de detenção do carandiru.

A emoção foi grande se olharmos por dentro desses dois irmãos, mas contida se só conseguirmos olhar por fora deles. Um abraço forte dos dois marcou a cena daquela manhã gelada pelo frio e pelo clima que aquele lugar remetia. Judas foi preso dia 17 de Dezembro de 1990, a noite, uma dia depois de ver no estádio do Morumbi o Corinthians se sagrar campeão brasileiro pela primeira vez. Foi solto dia 23 de Dezembro de 1998 depois de sobreviver a tantos contratempos como o massacre de 92, torcendo, mas sem saber, que o Corinthians seria campeão brasileiro pela segunda vez naquele dia. Sem saber também que estaria, 8 anos depois, com os ingressos que seu irmão havia comprado com o dinheiro da mensalidade da faculdade, presente no mesmo estádio do Morumbi passando pela mesma sensação que talvez o tenha motivado durante todos esses anos.

Prosa em poesia

Há dias que a vida se apaga
Somem o encanto, o tanto, o canto
Na rotina amarga do dia, vence o pranto
E é no chorar que o sentir se afaga

Mas não quero deixar de viver estas cenas
Nem tão rápido quero esquecer o sentir,
Pois se tão logo me flagro de mente serena
É porque pra vida, frustrado, eu tento mentir

Não se pode fugir do que a vida controla
Nem esperar que o tempo diga o caminho
Só sorrirás novamente se fize-lo sozinho

São nesses momentos que o peito se esfola
Mas também é daí que se tira o carinho
Pela frugalidade que a vida, efêmera, enrola