terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Dia de Sexta-Feira



Era dia de sexta-feira. Era dia de ver a namorada. O céu nublado de tarde já me alertava que a chuva que cai agora cairia. E chovia demais. A essas alturas a maldita estrada de terra já teria virado um riacho de lama. Eu sempre gostei de morar na fazenda, mas tinha dia que o que eu queria era explodir cada barracão daquela merda. Meu punho direito doía mais que picada de abelha no olho. Não sei se foi pelo esteio que tombou na minha mão ou se foi pelo soco que dei naquele verme. Dor forte do caralho. Mamãe me preparava um chá e dizia para eu ir ao hospital quando a chuva estiasse. Eu não gosto de dor, também não gosto de médico. A diferença é que a dor eu suporto.
           
Deu seis da tarde, a chuva ainda caía, a dor ainda doía e, para minha surpresa, papai não me deixou pegar a rural. Eu precisava do carro, papai não. Namorar moça da cidade às vezes é ruim. De carro eu não podia sair. Fui pro quarto, peguei uma muda de roupa e, decidido, me dirigi à porta. Papai tentou me impedir. Meus quatro irmãos se juntaram à saída de nosso quarto apenas para observar aquilo que os distrairia naquele instante. Mamãe já gritava angustiada da cozinha. Trombei em papai e saí feito bala debaixo de chuva. Não peguei a rural. Fui até o piquete e arriei aquela mula traiçoeira. A filha da puta sempre quis me derrubar. Eu vou de burro até o Chico, solto o burro lá e pego o ônibus, pensei. Passei em frente minha casa montado no burro. Papai me olhava da janela da cozinha com cara de quem queria me dar um tapa no pé da orelha. De tudo, eu só tinha certeza de uma coisa: papai tava bravo e ia sobrar pra alguém.
           
Chego à propriedade do Chico. Chico é Chico lenço preto. Peão, anda armado, malandro. Nunca roubou ninguém e ninguém nunca tentou lhe roubar. Enquanto soltava a mula no pasto, Chico me fitou de longe. Estava debaixo de uma espécie de coreto que construiu à beira de sua casa.
                        “To largando um burro aqui, amanhã eu pego, seu Chico”.
                        “Sai dessa chuva. Vem cá tomar um trago pra esquentar”.
           
Eu nunca fui de beber, mas aceitei. Julho no Paraná faz frio pra desgraçar. Além de tudo, o dia tava uma merda. Tomei aquele conhaque. Coisa amarga do caralho. Conhaque eu só tomava no puteiro.
                        “Cê deu uns cacete no Julinho hoje que eu to sabendo”.
                        “Filho da puta, Seu Chico. Sei que ele trabalha pro senhor, mas não agüentei não”.
                        “Mas o que que houve”?
                        “Ah, seu Chico. A gente dá duro aí pra conseguir fazer o trabalho direito aí vem um desgraçado e fica alugando a gente? Não ta certo não. Eu não dei trela e ele me derrubou o esteio da cerca que eu tava arrumando. Dei foi logo um soco na boca daquele vagabundo. O safado ainda saiu falando que comeu minha mulher, pode? Jurei ele.”
                        “Eu nunca gostei muito dele também não, mas não vai estragar sua vida, rapaz. Espera as coisas esfriarem. Ele não engoliu esses tapa também não”.
           
Eu não era de beber, não andava armado, mas tinha coisa que eu não aturava. Lenço preto era sábio. Sabia o peso de carregar morte nas costas, por isso me fazer refletir quando o conselho me concedeu. Mesmo o machão sabe das dificuldades que se tem em ficar em paz consigo mesmo depois de pecar dessa forma. Nesse momento me veio à mente o porquê de papai não me deixar pegar a rural. Papai sempre soube o que fez, até quando fez coisa errada. Ele já sabia do acontecido. Sabia que dia de sexta-feira era dia de namorar, mas sabia que nessa sexta-feira era dia de coisa ruim acontecer. Consigo tinha a certeza que satisfação com Luana eu ia tirar.
                        “Seu Chico, vou indo antes que eu perca o ônibus”.
                        “Não vai desgraçar sua vida...”
Caminhei até o ponto, que não era tão perto assim. Peguei o ônibus e logo estava em Apucarana. Lá não chovia.
            Cheguei à casa de Luana. Sua mãe estava aos prantos e seu pai não tinha voltado do bar.
                        “Aquela vagabunda fugiu, não foi”?
                        “Pelo amor de Deus, deixa ela em paz. Ela saiu da cidade, ta arrependida, foi pra bem longe. Deixa ela em paz!”
           
O desgraçado do Julinho havia passado mais cedo mandando ela ir embora. Sabia da besteira que tinha feito quando, com raiva, deixou escapar que havia dormido com ela. Antes de partir, Luana contou toda a história pra sua mãe. Se conheço bem Dona Rosa, caso Luana não tivesse saído, de qualquer forma Dona Rosa a teria expulsado de casa. Eu, agora, tinha a confirmação do acontecido. Julinho ia morrer só por ter me desaforado, mas agora eu estava com mais raiva. Acalmei Dona Rosa e disse que não iria atrás de sua filha. Dei minha palavra. Mais calma, aceitou meu pedido de pernoitar naquela casa. Foi a pior idéia que pude ter naquele momento. Toda aquela lembrança de Luana só me deixava com mais raiva dela e daquele vagabundo. Raiva dela eu não queria ter, mas gostava daquela sensação de ódio daquele filho da puta me corroendo cada vez mais por dentro.

            Amanheceu. Demonstrei a Dona Rosa meu carinho por ela e tomei o primeiro ônibus de volta. Cheguei à propriedade do Lenço Preto para pegar meu burro. Ele já havia saído pra tocar os bois. Arriei o burro e toquei pra casa. Quando cheguei, papai ainda estava lá. Estava sentado na mesa da cozinha, com um cigarro de palha aceso, tomando café. A garotada ainda dormia e mamãe estava no quarto. Papai não tinha saído, pois estava me esperando. Fiquei alguns segundos parado à porta olhando para ele.
                        “Ela fugiu”. Conste-se que depois de algum tempo fiquei sabendo que ela foi pra Ribeirão Preto e lá acabou dando certo como professora universitária.
                        “Melhor assim”.
Papai levantou-se, pegou o chapéu de cima da mesa, pegou o laço que estava amarrado em um prego na parede e partiu ao trabalho. Papai sabia que eu não ia trabalhar naquele dia. Pouco depois mamãe saiu do quarto aos prantos. Havia passado a noite rezando. Mamãe sabia que eu precisaria mais do que uma oração, mas teve a certeza que foi Deus quem fez aquela moça fugir.

            Tomei meu café da manhã. Decidi ir trabalhar. Julinho iria saber que fui até Apucarana logo e saber que não apareci no trabalho poderia deixá-lo ainda mais alerta. Dessa vez saí com um revólver no bolso. Filho da puta poderia armar pra cima de mim e eu não ia ser tolo a ponto de nem uma arma ter na cintura.

            Cheguei ao trabalho. Havia me esquecido daquela dor maldita até ver aquele esteio caído no chão. Minha raiva só aumentou. Cumprimentei os peões que por ali estavam e voltei a fazer aquela cerca infindável. Já depois do almoço, na hora que todos os peões estão recomeçando as suas obrigações, peguei o canivete que comigo sempre andou, presente de papai, e fiz um corte em minha própria mão. Aquele sangue escuro começou a escorrer feito uma cascata e logo alguns peões vieram me ajudar. Eu precisava de uma desculpa para não aparecer no trabalho no dia seguinte e precisava que aquele desgraçado soubesse disso. Me levaram até uma espécie de enfermaria da fazenda, que ficava no armazém da propriedade. Lá jogaram álcool e suturaram de maneira melhor possível meu ferimento. Fui pra casa e, mesmo que ninguém pudesse ver, meu sangue estava no olho, não naquele corte.

            Quando já era madrugada, me levantei da cama. Peguei o 38, o meti na cintura. Saí do quarto devagar para não acordar ninguém, porém papai estava acordado, sentado na mesa da cozinha, fumando o seu cigarro de palha como outrora. Papai parecia saber de tudo. Me viu sair sem me fazer nenhuma pergunta. Eu precisava sair a noite, de tal forma que ninguém pudesse me ver seguindo o caminho da casa de Julinho. Dessa maneira, quando amanhecesse e todos fossem labutar e não me vissem, achariam que eu estava em casa por ter me ferido. Julinho não ficaria temeroso e talvez até se sentisse mais seguro em tentar armar uma emboscada para mim.

            Eu tinha um bom plano, por assim dizer. Tinha também, ao meu lado, o fato daquele filho da puta morar sozinho. Não me surpreendia que ele nunca tivesse casado, o que me deixava com mais raiva de Luana. Como aquela linda mulher foi me trair com um desgraçado filho da puta daquele? Por honra, ele nunca tentaria me atacar em casa, com minha mãe, pai e irmãos morando comigo.

            Cheguei à casa do maldito ainda noite. Ainda bem que ele não tinha cachorro. Subi no pé de Jambo que havia no quintal e fiquei na espreita. A raiva que eu tinha me impedia de sentir, além da dor no punho, a dor do corte na mão. A árvore ficava nos fundos da casa onde, depois, só havia pastagem. As casas de peão são sempre longe umas das outras, o que facilitava minha entrada sorrateira. O desgraçado saiu pra trabalhar.

            Trancou a porta da casa. Saiu pelos fundos. Esperei bons minutos até ter certeza de que ele não voltaria. As dobradiças das janelas daquela casa antiga ficavam pro lado de fora. Por ironia, consegui arrancá-las com as ferramentas que achei embaixo do tanque, que ficava na lateral da residência. Achei que teria que arrombar alguma das saídas. Foi mais fácil do que eu esperava.

            Entrei como se fosse fogo queimando aquele filho da puta. Naquele momento eu não tinha medo de nada. Peguei um saco plástico em cima da escrivaninha corroída e arrodiei o vão da sala. Junto a mim, além do saco, o pequeno canivete bem amolado, presente de papai. Com um pulo pouco aeróbico, subi numa espécie de armário, mas não era um armário. Não guardava nada lá. Era um móvel antigo, mas bem conservado, que ficava localizado de tal modo que eu o poderia ver entrando por qualquer umas das duas portas. Subi nesse troço e esperei por longas horas. No momento em que aquele verme maldito entrou, meu coração disparou como nunca havia imaginado que fosse acontecer. Mesmo assim mantive a calma. Esperei ele trancar a porta e antes que ele pudesse ascender a luz, dei um tiro em sua perna, apenas para feri-lo. Estava um tanto escuro e ele não podia imaginar de onde veio o tiro. Esperei para ver se ele sacaria um revólver. Quando vi que estava desarmado, desci vagarosamente de onde estava e ascendi a luz. O fitei em seus olhos trêmulos de medo e dor.  Ele, caído no chão, sangrando em seu tapete, teve o discernimento de não pedir misericórdia. Um bosta desses sabe que não merece perdão. Ajoelhei-me ao seu lado, dei mais um tiro, dessa vez na outra perna, sem trocar uma só palavra. Me levantei, chutei sua cabeça durante alguns segundos. Peguei o canivete e cortei seu pescoço. Eu merecia isso. Aquele desgraçado não foi morto por mim, foi morto pela minha honra. O saco plástico me serviu apenas para amarrar sua cabeça no pé da mesa da sala. Isso não mudou em nada o ocorrido, apenas me divertiu olhar praquela merda toda.
            Saí antes que alguém pudesse chegar, mas tive tempo de lavar minhas mãos ensangüentadas no tanque da casa. Subi novamente no pé de jambo. Agora eu já sentia a maldita dor nas mãos. Fiquei lá em cima por mais algum tempo, esperando que alguma pessoa tivesse ouvido algo e fosse tirar suas dúvidas. Ninguém apareceu naquela noite. Fui para casa novamente de madrugada. Papai estava acordado, do mesmo jeito das outras vezes, fumando seu cigarro de palha na mesma cadeira da cabeceira da mesa da cozinha. Quando viu minha chegada, me olhou nos olhos profundamente e isso foi o suficiente para saber o que tinha acontecido. Estendeu a mão para mim, eu lhe entreguei a arma. Pegou aquele revólver e se voltou em direção ao seu quarto.

            Depois de tudo, só pude me lembrar das palavras de Chico Lenço Preto e saber que quando me aconselhou a não desgraçar minha vida, disse, na verdade, para matar aquele desgraçado.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O Carteiro


O carteiro não tinha rotina. Nada o incomodava mais do que fazer sempre as mesmas coisas. Óbviamente não conseguia fugir às tarefas que colocam a coca-cola e a tv a cabo em casa. Fazia com gosto, aliás. Todos os dias acordava no mesmo horário, mas não fazia sua primeira refeição no mesmo lugar. Algum dia comia em casa, outro na padaria, outro na outra padaria, outro no boteco perto da agência. Havia dias de não comer também, muito embora isso lhe causasse estranha mudança de humor. Todos os dias ia para o trabalho, mas tinha dia que ia de ônibus, tinha dia que ia de bicicleta, tinha dia que ia a pé. Tinha dia que não ia trabalhar, mas isso só em finais de semana.

Sua tarefa básica era entregar correspondências a pé. Tem carteiro que anda de moto, mas ele andava a pé. Não era uma opção, algo que pudesse escolher. Era assim. Ele andava a pé, como tantos, não de moto, como outros tantos. Não se importava com isso e, na verdade, gostava. Andando ele tinha mais tempo para pensar, coisa que fazia em demasia. Andava e, a cada casa, refletia sobre as pessoas que lá residiam, tentantdo imaginar como seria a vida de cada uma delas. Criava conhecidos pelos caminhos que transitava e se sentia bem com isso. Nada poderia lhe tirar a vontade de ser um observador.

A sua vida lhe fazia, por falta de tempo, ir ao mercado aos domingos. Às vezes ia aos sábados, mas costumava ir aos domingos. Não era algo que odiava fazer, afinal ir ao supermercado comprar carne, derivados do leite e bebidadas alcoólicas para um solteirão fumante não poderia ser tão ruim. Não era casado, não tinha filhos, não tinha família. Comprava aquilo que o satisfazia e isso podia ser melhor do que possa parecer. Costumava comprar, sem exceção, bifes de chã, queijo tipo prato, iogurte do mais barato, cerveja, arroz Tio Jorge, feijão carioca e alguma leguminosa que lhe fazia vontade naquele momento. Frutas  lhe pareciam muito caras pelo custo-benefício. Uma maçã-verde a sete reais o quilo não lhe suava tentador. Ultimamente, diga-se de passagem, começou a comprar alcaparras, coisa que comeu há um tempo enorme, mas gostou. Atribui isso ao governo Lula, mas havia quem discordasse.

Em seus devaneios tolos, para citar Zé Ramalho, que lhe faziam viver, acabava por ficar de porre, seja por falta de inteligência, seja por falta do que fazer, seja por falta de viver. Essa história se repete muitas vezes na vida cotidiana de milhares de pessoas. Não digo que nosso protagonista tinha uma ânsia, uma vontade inenarrável de beber e continuar a fazer o que faz, digo apenas que tem coisas que acabam se tornando inerentes às pessoas. O se embreagar no final de semana fazia parte de sua vida e isso pode ser mais difícil de entender do que o aborto. Beber aos sábados e, vespertinamente, aos domingos, era algo tão bom e tão saudável para si que, com o passar dos dias, acaba convertendo isso em coisa boa, em coisa que constrói sua personalidade de carteiro concursado que gosta de cigarros.

Em suas andanças infindáveis pela cidade, via de tudo e tudo lhe parecia comum. Não se abismava com mais nada. Quando o inusitado vira algo cotidiano, ele deixa de ser inusitado: tudo é normatizado. Mendigos, ladrões, policiais, janelas, hot-dogs, prostitutas menores de idade, assaltos, cães ferozes, belas mulheres, futebol, fúria, nada disso poderia lhe causar estranheza ou alguma coisa diferente dentro do peito. Tudo isso ele tinha como o mundo. Apenas o mundo mostrando suas entranhas e, em contrapartida, seus dotes mais belos.

A camisa amarela com detalhes em azul e "gola polo" lhe incomodava sem precedentes. Aquela gola roçando seu pescoço suado em dia de sol quente lhe parecia o fim da picada, no entanto, como podemos ir reparando aos poucos, ele não contestava. Aliás, pensava que se a camisa fosse preta seria muito pior. O suor que escorre pelo seu corpo e molha sua camisa tinha que ser normatizado. É assim que a vida segue e é assim que ele vivia. Mas, por conta disso e dos pequenos prazeres que a vida acaba nos revelando, comprou um ar condicionado. Nada lhe parecia pior do que o suor na camisa, mas nada lhe parecia melhor do que, depois do trabalho, chegar em casa e ligar o ar condicionado. Soube fazer do sofrimento diurno um prazer sem limites, ainda mais na segunda-feira, depois das compras de domingo, quando a cerveja que sobrou colocava a cereja no bolo.

Sua vida seguia o rumo que queria. Nada lhe faltava, apesar de não viver com extravagâncias. Caminhando pela rua que dá acesso à agência, vê algo que julgou diferente, a saber, uma linda mulher. Ele, pelas andanças que faz na cidade, já tinha visto muitas mulheres bonitas, mas aquela era linda. Mulheres bonitas existem milhões pelo mundo adentro, mas a "linda" é aquela que mexe de verdade. Aquela mexeu. Seus olhos fitavam o caminhar da moça, entretidos naquelas pernas que julgou serem as mais perfeitas que Deus ousou fabricar.
 Os cabelos morenos escorridos, tocando a tez de sua face formosa lhe fizeram sentir o inusitado. Sua mão direita por pouco não deixa cair o cigarro com o esbarrão de um transeunte que, sem que ele ao menos sentisse, lhe trombara. A moça caminha até a agência dos Correios e é o que ele precisava para achar que o destino de ambos estava traçado. Joga o cigarro no chão, coisa que geralmente não fazia, e se dirige, a passos largos, para a agência.

Há muito o inusitado não lhe acontecia. Isso é, na maior parte da vezes, ruim. Viver sem algo que não se espera que aconteça soa meio chato. Acho que a última vez que o inusitado lhe aconteceu foi no título brasileiro do Botafogo, em 95. Ele não esperava que aquilo fosse acontecer realmente, mas aconteceu e foi, provavelmente, uma coisa muito mais gostosa de desfrutar. Chega na agência ainda pasmo. Entra e vê o que julga ser a perfeição conversando com seu amigo, talvez o mais próximo dos poucos amigos que tem, sobre algum assunto que não conseguiu decifrar. Logo depois, um abraço acalentador dos dois acontece e, enfim, a moça sai da agência sob o olhar perseguidor do nosso carteiro, que não esboça qualquer reação. Seu amigo o chama para mais perto e pergunta se viu a moça que acabara de sair. Com o sinal de positivo, o homem lhe conta, com os olhos cheios de lágrima, que aquela é a sua única filha. Conta também que ela foi até lá para dar a notícia que acabara de saber: estava grávida. O inusitado lhe encontra novamente.

O carteiro, após recebida a notícia e ter dado os parabéns, devolve sua sacola vazia depois do dia de trabalho e, como de costume, vai para casa. Naquele dia decidiu ir a pé. Não é de se esperar que alguém se apaixone a primeira vista, mas pode acontecer e, como vimos, acontece. Anda até em casa pensando em tudo que havia acontecido. A moça não saiu de sua cabeça. Aquele inusitado não poderia ser normatizado por ele. Nunca. Ele se dá conta que existem momentos em que não se quer pensar em nada e que existem momentos em que você resume sua vida em pensar, em refletir. O que acaba ficando claro é que existem momentos, e que pensar e não pensar se completam. O não pensar muitas vezes pode ser reconfortante, assim como a recíproca é verdadeira, mas não pensar é complicado. Quando o não pensar se torna algo de importância, é sinal de que isso que se faz questão de não pensar tem a maior importância. Não se pensa por querer pensar e, assim, se pensa. Desse modo, tentando não pensar naquilo que não saía de sua cabeça, encontra uma justificativa para beber aos sábados e nas tardes de domingo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Amizade


Eram dois. Duas pessoas distintas e contemporâneas uma da outra. Passaram por momentos turbulosos da história de um país que já não é o mesmo daqueles tempos sangrentos. A história dos dois se entrelaça em algum momento desse passado. Pessoas de bem, democráticas e, acima de tudo, patriotas, combateram, cada um à sua forma, o governo militar. Nunca foram amigos, talvez nunca tivessem se encontrado, mas isso mudaria para sempre.

Nessa época sanguinária, se torturava. Alguns fugiam do país. Se exilavam em terras menos perigosas por conta da perseguição política e o medo das torturas e da morte. Algumas iam ainda mais além. No período de exílio, estudavam economia e se pós-graduavam diversas vezes. Viajavam o mundo todo, davam aulas e, a cada momento que a situação se tornava ruim, uma vez que aquela época foi marcada por ditaduras em diversos países, se mudavam para obterem mais tranquilidade.

Por outro lado, haviam pessoas que não fugiam à luta e mostravam que o hino brasileiro poderia estar correto em alguma medida. Enquanto muitos fugiam, outros tantos ficavam. Ficavam e se escondiam. Eram descobertos, eram presos, eram torturados, eram soltos, mudavam de nome e voltavam a se esconder e lutar. Pegavam em armas, e estavam ali, atirando em milicos, colocando a cabeça a prêmio e, principalmente, o coração na cabeça. Essas pessoas não saíram do país. Essas pessoas foram brutalmente torturadas e não entregaram seus companheiros de luta.

Obviamente eu não estou desmerecendo os exilados políticos. Jamais faria isso e sei da importância de cada um deles para a história nacional. O que faço é apenas mostrar como dois lados da mesma moeda se comportaram em um período passado. Tinham os perseguidos que fugiam e tinham os perseguidos que ficavam. Os nossos dois protagonistas se enquadram cada um em um desses dois grupos, um pra cá, outro pra lá.

O tempo passa. O ditado já alerta há muitos anos que o tempo é uma raposa. Poucas pessoas devem refletir sobre isso. Se refletissem talvez matassem mais aulas, roubassem mais pessoas, prendessem mais ladrões, fossem mais a um estádio de futebol. Mas o tempo passa de todo jeito. Pessoas mudam, pessoas não mudam, pessoas se encontram, se reencontram ou nunca mais se encontram. Pessoas mudam de lado, outras não. Se olharmos para estes dois seres que descrevo, veremos que ambos continuam em lados opostos. Um ainda luta por si, o outro ainda briga por todos.

Depois de passados tantos anos, se conheceram. Não sei se da melhor forma, mas o fato é que se conheceram. Em meio a ataques, aquele que não fugiu à luta agora é vítima de seu passado por parte daquele que estava do seu lado, mas de um lado diferente. Interessante notar como a história é colocada a mercê de interesses múltiplos. Nota-se também que o caráter das pessoas não muda tão facilmente assim. E nessa de acusar o bom de ser ruim e de fazer do ruim um santo que tem vivências grandiosas e um passado de dar inveja a qualquer um, aquele que outrora foi a alma combativa de uma sociedade encarcerada agora, sem apoio daqueles que detém os meios de transmitir a informação, luta para continuar vivendo o sonho dos mais pobres do Brasil-continente, daqueles esquecidos pros lado do norte, aonde não tem água, não tem verde e não tem nuvem.

Os dois podem ter ideias parecidas em muitos aspectos e provavelmente isso é verdade. Os dois podem ser a favor da descriminalização do aborto, mas quem não tem caráter não poderia admitir isso para um país inteiro. O que não tem caráter é a favor das classes médias e da igreja e isso não tem se mostrado interessante. Para não me esquecer, este citado acima, em uma de suas grandes obras de um passado político invejável, foi ministro da saúde e por ele mesmo considerado o melhor. Partindo desse pressuposto, provavelmente sabe que a questão do aborto é, para não entrar nos méritos do direito da mulher, uma questão de saúde pública. Mas tem aquele que põe a cara a tapa e diga isso. E diga que mulheres morrem. E diga que a maioria delas são pobres e pretas. E diga que a via penal não é a melhor forma de resolver a questão e que, com políticas públicas de auxílio, as taxas de aborto seriam reduzidas.

O fato é que esses dois se conheceram. Não houve amor a primeira vista, tampouco ficaram amigos. O grande ponto é que um deles é um demagogo de primeira linha. Um Sir da demagogia nacional, por assim dizer. Gosta muito de ir contra a maré no que tange seus ideais e sentimentos, mas vai a favor dela quando lhe convém. É capaz de fazer um vídeo de si com a foto de seu inimigo ao fundo por pura falta de dignidade. Seria como Mahatma Gandhi colar um pôster de George W. Bush em um cômodo de sua residência indiana se estes fossem contemporâneos. Mas ele faz porque lhe convêm. E também lhe convêm ler a Veja para saber se suas acusações, programadas e alarmantes, colaram. Do outro lado, aquele que quer dar sequência a algo de bom que acontece no Brasil, tem que perder tempo em explicações sobre um dos milhares de escândalos típicos do período em que passam.

Ambos trilham caminhos que se entrelaçam de alguma maneira, mas cada um está em um ponto específico. De tudo, é importante lembrar que estão inseridos em partidos políticos. Um é azul, outro é vermelho, mas os dois tiveram seus momentos e não precisamos buscar muito pra saber qual deles foi melhor. Também sabemos que os ideais de cada um destes partidos é o que tem que ser analisado com maior cuidado e o caráter de alguém diz muito sobre ele, sobre seu partido e sobre seus jogos políticos.


Esses dois protagonistas se encontraram, se conheceram e não se gostaram. Os dois trilham caminhos distintos para chegar ao mesmo lugar. Se eles estivessem concorrendo a uma eleição para presidente do Brasil, eu com certeza votaria no do partido vermelho. Votaria na Dilma.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Histórias

O despertador toca apenas uma vez e logo pára. Era o suficiente para acordar o seu sono leve e ele era rápido o suficiente para não deixa-lo tocar mais que o necessário. O som do relógio o irrita, mas era assim que tinha que ser. Desliga o aparelho ainda com os olhos fechados e estes assim permaneciam por mais alguns instantes. Sempre. Estica o braço até uma espécie de criado-mudo que fica paralelo a sua cama para pegar o controle-remoto e ligar a televisão. O barulho o ajuda a "acordar" e ainda ouve as notícias do jornal da manhã. Esse custo-benefício lhe parecia sempre tentador.

Pensa em se levantar. Pensa em ficar deitado. Acaba sentando na cama e ali  estagna por alguns segundos enquanto, aparentemente, toma coragem para finalizar o ritual de todas as manhãs. Levanta, vai até o banheiro, lava o rosto e escova os dentes na pia amarelada pelo tempo . Sempre toma banho depois de jantar para não precisar fazê-lo de manhã, quando o frio é mais intenso. Vai até o armário, pega a primeira camisa da pilha e veste. Vai até a sala e pega sua calça pendurada na cadeira do computador e veste. Lembra de voltar até o quarto para recolher a toalha molhada que dixara em cima da cama. Pega sua mochila e sai ansioso, mesmo que isso não seja transparecido em seus gestos.

Chega na padaria, come um pão com manteiga e toma uma coca-cola em garrafa. Não gosta muito de café pela manhã e, ao mesmo tempo, frequenta esta padaria pelo simples fato de ela ser a única no bairro que oferta a coca em garrafa de vidro, a qual aprecia sem precedentes desde o tempo em que o refrigerante era mais barato que gasolina. Terminada sua refeição, dirigi-se à fila do caixa. Um conhecido o cumprimenta com um tapinha nas costas. Nada lhe parecia mais odioso que um tapinha nas costas. Tira o dinheiro amassado de dentro da mochila para saldar sua dívida momentânea, não sem antes contestar o recente aumento no preço do pão com manteiga. Ao sair, reflete sobre a possibilidade de passar a comer pão com margarina, apesar de ter aprendido a venerar manteiga com sua mãe desde os tempos de criança. Deixa para decidir depois.

Anda alguns quarteirões até a estação do metropolitano. Seus passos são rápidos. A essa hora da manhã os trens e as estações estão lotados e espera-se mais para embarcar do que o tempo que leva para se locomover  até o seu destino. Ele sempre pensa nisso. E sempre pensa em comprar um bicicleta, mas teme o trânsito caótico da cidade. Sempre releva a possibilidade de acabar sofrendo um acidente fatal.

Ao chegar na estação, nota que algo diferente aconteceu. Dirige-se até um dos funcionários do metrô e indaga sobre o que se passava. A estação estava mais intolerável do que o normal. A resposta é curta e suficiente para fazê-lo regressar: "Trem hoje tá complicado, mano. Quebrou um comboio lá pros "lado"  do Jabaquara e não tem previsão de "arrumá" não. O povo tá no meio dos "trilho" lá e parece que vai "demorá" bastante". Hoje só de busão "memo". A falta de precisão da resposta o irritou tanto quanto o fato de esse imprevisto ter acontecido logo neste dia.

Sai da estação e compra um maço de cigarros. Tentava parar. Já não havia fumado depois do café-da-manã, mas pensou ser este o melhor momento para voltar. Enquanto o tabaco queimava, tentava achar uma solução para chegar ao seu destino, que hoje não era a faculdade. O tempo do cigarro foi o suficiente para decidir ir de ônibus, como sugeriu o guarda. Ele sabia que os ônibus estariam mais cheios que o normal, mas não aquele pandemômino que avistou há uns 20 metros distante dos seus olhos enquanto caminhava. O ponto parecia a 25 de março em véspera de natal. Os ônibus não conseguiam sair do lugar e, além de tudo, com os trens parados, o número de carros aumentaram a olhos vistos nas ruas. Com esse cenário, não exitou em dar meia volta em direção à estação novamente. Queria informações mais precisas. Chega e muda de ideia ao rever o inferno na terra. Vai até o banco, que ficava logo na esquina.

Caminha até o auto-atendimento e saca cerca de 50 reais, que fariam falta mais tarde. A alternativa que ele havia encontrado era sem dúvida, depois de atravessar o trânsito de helicóptero, a mais rápida e a única viável financeiramente. Foram 10 minutos até encontrar um ponto de moto-táxi. "Mano, tem aqui 50 pila pra você tocar o mais rápido possível lá pra norte, firmeza? Pro no Carandiru". "Firmão, mano." O taxista não se mostrou preocupado com o trânsito mais intenso da cidade.

No percurso uma ponta de arrependimento fura seu peito. A vida de motoqueiro em São Paulo não lhe pareceu das mais seguras. Teve medo durante todo o trajeto e, ainda, teve a certeza de nunca comprar uma bicicleta para andar nas ruas de São Paulo. No máximo no Ibirapuera dar umas voltas, pensou consigo. O taxista lhe deixou no carandiru, na parte exatamente oposta àquela que fica logo de fronte à linha do metropolitano paulista. Fez isso para se esquivar ao máximo das avenidas principais que, nessa altura, teria congestionamento até de moto. Ele contornou todo o presídeo até a outra fachada paralela. Já passava das 10 horas quando chegou. Ele não conseguiu esperar seu "irmão" na porta; quando chegou ele já estava sentado do lado de fora da penitenciária, com uma pequena maleta que guardava o pouco que lhe restou depois de 8 anos de cadeia. 

A história tem um lado mais bonito do que feio. Amigos desde a infância, moradores do Tatuapé e vizinhos, eram considerados irmãos um pelo outro desde sempre. Uma certa vez, um assaltante entrou em sua casa desarmado, portando apenas uma espécie de punhal. Rendeu sua mãe e seu pai não estava em casa. Ele conseguiu ver tudo isso sem ser percebido, pois estava no banheiro e o basculhante do cômodo dava diretamente na cozinha, onde tudo se passava. Desnorteado, foi até o quarto de seus pais, pegou a arma que fica sempre com o tambor carregado, refletiu por alguns segundos até parar de ouvir os gritos de sua mãe. Nesse instante ele caminha até a cozinha, onde o bandido colocava uma mordaça na vítima. Nessa altura o assaltante já não empunhava mais a faca, uma vez que, pensando só estar a mulher na casa, já havia dominado todos do recinto. Ao chegar, com a arma apontada para a parte superior da cintura do bandido, lhe intima a soltar sua mãe: "solta ela ou mato você". O bandido não temeu o rapaz de 16 anos. Correu atrás de seu punhal. Ouve exitação do tiro e a faca foi pega, mas o desconhecido caminhou na direção da dona-de-casa e então se ouviu o estrondo. Aí que entra Judas, seu melhor amigo e vizinho. Como seu amigo era menor de idade, os problemas recairiam não somente nele, mas em seu pai, que sofria de uma série de problemas respiratórios. Judas assumiu a autoria do tiro e foi preso na casa de detenção do carandiru.

A emoção foi grande se olharmos por dentro desses dois irmãos, mas contida se só conseguirmos olhar por fora deles. Um abraço forte dos dois marcou a cena daquela manhã gelada pelo frio e pelo clima que aquele lugar remetia. Judas foi preso dia 17 de Dezembro de 1990, a noite, uma dia depois de ver no estádio do Morumbi o Corinthians se sagrar campeão brasileiro pela primeira vez. Foi solto dia 23 de Dezembro de 1998 depois de sobreviver a tantos contratempos como o massacre de 92, torcendo, mas sem saber, que o Corinthians seria campeão brasileiro pela segunda vez naquele dia. Sem saber também que estaria, 8 anos depois, com os ingressos que seu irmão havia comprado com o dinheiro da mensalidade da faculdade, presente no mesmo estádio do Morumbi passando pela mesma sensação que talvez o tenha motivado durante todos esses anos.

Prosa em poesia

Há dias que a vida se apaga
Somem o encanto, o tanto, o canto
Na rotina amarga do dia, vence o pranto
E é no chorar que o sentir se afaga

Mas não quero deixar de viver estas cenas
Nem tão rápido quero esquecer o sentir,
Pois se tão logo me flagro de mente serena
É porque pra vida, frustrado, eu tento mentir

Não se pode fugir do que a vida controla
Nem esperar que o tempo diga o caminho
Só sorrirás novamente se fize-lo sozinho

São nesses momentos que o peito se esfola
Mas também é daí que se tira o carinho
Pela frugalidade que a vida, efêmera, enrola