terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Dia de Sexta-Feira



Era dia de sexta-feira. Era dia de ver a namorada. O céu nublado de tarde já me alertava que a chuva que cai agora cairia. E chovia demais. A essas alturas a maldita estrada de terra já teria virado um riacho de lama. Eu sempre gostei de morar na fazenda, mas tinha dia que o que eu queria era explodir cada barracão daquela merda. Meu punho direito doía mais que picada de abelha no olho. Não sei se foi pelo esteio que tombou na minha mão ou se foi pelo soco que dei naquele verme. Dor forte do caralho. Mamãe me preparava um chá e dizia para eu ir ao hospital quando a chuva estiasse. Eu não gosto de dor, também não gosto de médico. A diferença é que a dor eu suporto.
           
Deu seis da tarde, a chuva ainda caía, a dor ainda doía e, para minha surpresa, papai não me deixou pegar a rural. Eu precisava do carro, papai não. Namorar moça da cidade às vezes é ruim. De carro eu não podia sair. Fui pro quarto, peguei uma muda de roupa e, decidido, me dirigi à porta. Papai tentou me impedir. Meus quatro irmãos se juntaram à saída de nosso quarto apenas para observar aquilo que os distrairia naquele instante. Mamãe já gritava angustiada da cozinha. Trombei em papai e saí feito bala debaixo de chuva. Não peguei a rural. Fui até o piquete e arriei aquela mula traiçoeira. A filha da puta sempre quis me derrubar. Eu vou de burro até o Chico, solto o burro lá e pego o ônibus, pensei. Passei em frente minha casa montado no burro. Papai me olhava da janela da cozinha com cara de quem queria me dar um tapa no pé da orelha. De tudo, eu só tinha certeza de uma coisa: papai tava bravo e ia sobrar pra alguém.
           
Chego à propriedade do Chico. Chico é Chico lenço preto. Peão, anda armado, malandro. Nunca roubou ninguém e ninguém nunca tentou lhe roubar. Enquanto soltava a mula no pasto, Chico me fitou de longe. Estava debaixo de uma espécie de coreto que construiu à beira de sua casa.
                        “To largando um burro aqui, amanhã eu pego, seu Chico”.
                        “Sai dessa chuva. Vem cá tomar um trago pra esquentar”.
           
Eu nunca fui de beber, mas aceitei. Julho no Paraná faz frio pra desgraçar. Além de tudo, o dia tava uma merda. Tomei aquele conhaque. Coisa amarga do caralho. Conhaque eu só tomava no puteiro.
                        “Cê deu uns cacete no Julinho hoje que eu to sabendo”.
                        “Filho da puta, Seu Chico. Sei que ele trabalha pro senhor, mas não agüentei não”.
                        “Mas o que que houve”?
                        “Ah, seu Chico. A gente dá duro aí pra conseguir fazer o trabalho direito aí vem um desgraçado e fica alugando a gente? Não ta certo não. Eu não dei trela e ele me derrubou o esteio da cerca que eu tava arrumando. Dei foi logo um soco na boca daquele vagabundo. O safado ainda saiu falando que comeu minha mulher, pode? Jurei ele.”
                        “Eu nunca gostei muito dele também não, mas não vai estragar sua vida, rapaz. Espera as coisas esfriarem. Ele não engoliu esses tapa também não”.
           
Eu não era de beber, não andava armado, mas tinha coisa que eu não aturava. Lenço preto era sábio. Sabia o peso de carregar morte nas costas, por isso me fazer refletir quando o conselho me concedeu. Mesmo o machão sabe das dificuldades que se tem em ficar em paz consigo mesmo depois de pecar dessa forma. Nesse momento me veio à mente o porquê de papai não me deixar pegar a rural. Papai sempre soube o que fez, até quando fez coisa errada. Ele já sabia do acontecido. Sabia que dia de sexta-feira era dia de namorar, mas sabia que nessa sexta-feira era dia de coisa ruim acontecer. Consigo tinha a certeza que satisfação com Luana eu ia tirar.
                        “Seu Chico, vou indo antes que eu perca o ônibus”.
                        “Não vai desgraçar sua vida...”
Caminhei até o ponto, que não era tão perto assim. Peguei o ônibus e logo estava em Apucarana. Lá não chovia.
            Cheguei à casa de Luana. Sua mãe estava aos prantos e seu pai não tinha voltado do bar.
                        “Aquela vagabunda fugiu, não foi”?
                        “Pelo amor de Deus, deixa ela em paz. Ela saiu da cidade, ta arrependida, foi pra bem longe. Deixa ela em paz!”
           
O desgraçado do Julinho havia passado mais cedo mandando ela ir embora. Sabia da besteira que tinha feito quando, com raiva, deixou escapar que havia dormido com ela. Antes de partir, Luana contou toda a história pra sua mãe. Se conheço bem Dona Rosa, caso Luana não tivesse saído, de qualquer forma Dona Rosa a teria expulsado de casa. Eu, agora, tinha a confirmação do acontecido. Julinho ia morrer só por ter me desaforado, mas agora eu estava com mais raiva. Acalmei Dona Rosa e disse que não iria atrás de sua filha. Dei minha palavra. Mais calma, aceitou meu pedido de pernoitar naquela casa. Foi a pior idéia que pude ter naquele momento. Toda aquela lembrança de Luana só me deixava com mais raiva dela e daquele vagabundo. Raiva dela eu não queria ter, mas gostava daquela sensação de ódio daquele filho da puta me corroendo cada vez mais por dentro.

            Amanheceu. Demonstrei a Dona Rosa meu carinho por ela e tomei o primeiro ônibus de volta. Cheguei à propriedade do Lenço Preto para pegar meu burro. Ele já havia saído pra tocar os bois. Arriei o burro e toquei pra casa. Quando cheguei, papai ainda estava lá. Estava sentado na mesa da cozinha, com um cigarro de palha aceso, tomando café. A garotada ainda dormia e mamãe estava no quarto. Papai não tinha saído, pois estava me esperando. Fiquei alguns segundos parado à porta olhando para ele.
                        “Ela fugiu”. Conste-se que depois de algum tempo fiquei sabendo que ela foi pra Ribeirão Preto e lá acabou dando certo como professora universitária.
                        “Melhor assim”.
Papai levantou-se, pegou o chapéu de cima da mesa, pegou o laço que estava amarrado em um prego na parede e partiu ao trabalho. Papai sabia que eu não ia trabalhar naquele dia. Pouco depois mamãe saiu do quarto aos prantos. Havia passado a noite rezando. Mamãe sabia que eu precisaria mais do que uma oração, mas teve a certeza que foi Deus quem fez aquela moça fugir.

            Tomei meu café da manhã. Decidi ir trabalhar. Julinho iria saber que fui até Apucarana logo e saber que não apareci no trabalho poderia deixá-lo ainda mais alerta. Dessa vez saí com um revólver no bolso. Filho da puta poderia armar pra cima de mim e eu não ia ser tolo a ponto de nem uma arma ter na cintura.

            Cheguei ao trabalho. Havia me esquecido daquela dor maldita até ver aquele esteio caído no chão. Minha raiva só aumentou. Cumprimentei os peões que por ali estavam e voltei a fazer aquela cerca infindável. Já depois do almoço, na hora que todos os peões estão recomeçando as suas obrigações, peguei o canivete que comigo sempre andou, presente de papai, e fiz um corte em minha própria mão. Aquele sangue escuro começou a escorrer feito uma cascata e logo alguns peões vieram me ajudar. Eu precisava de uma desculpa para não aparecer no trabalho no dia seguinte e precisava que aquele desgraçado soubesse disso. Me levaram até uma espécie de enfermaria da fazenda, que ficava no armazém da propriedade. Lá jogaram álcool e suturaram de maneira melhor possível meu ferimento. Fui pra casa e, mesmo que ninguém pudesse ver, meu sangue estava no olho, não naquele corte.

            Quando já era madrugada, me levantei da cama. Peguei o 38, o meti na cintura. Saí do quarto devagar para não acordar ninguém, porém papai estava acordado, sentado na mesa da cozinha, fumando o seu cigarro de palha como outrora. Papai parecia saber de tudo. Me viu sair sem me fazer nenhuma pergunta. Eu precisava sair a noite, de tal forma que ninguém pudesse me ver seguindo o caminho da casa de Julinho. Dessa maneira, quando amanhecesse e todos fossem labutar e não me vissem, achariam que eu estava em casa por ter me ferido. Julinho não ficaria temeroso e talvez até se sentisse mais seguro em tentar armar uma emboscada para mim.

            Eu tinha um bom plano, por assim dizer. Tinha também, ao meu lado, o fato daquele filho da puta morar sozinho. Não me surpreendia que ele nunca tivesse casado, o que me deixava com mais raiva de Luana. Como aquela linda mulher foi me trair com um desgraçado filho da puta daquele? Por honra, ele nunca tentaria me atacar em casa, com minha mãe, pai e irmãos morando comigo.

            Cheguei à casa do maldito ainda noite. Ainda bem que ele não tinha cachorro. Subi no pé de Jambo que havia no quintal e fiquei na espreita. A raiva que eu tinha me impedia de sentir, além da dor no punho, a dor do corte na mão. A árvore ficava nos fundos da casa onde, depois, só havia pastagem. As casas de peão são sempre longe umas das outras, o que facilitava minha entrada sorrateira. O desgraçado saiu pra trabalhar.

            Trancou a porta da casa. Saiu pelos fundos. Esperei bons minutos até ter certeza de que ele não voltaria. As dobradiças das janelas daquela casa antiga ficavam pro lado de fora. Por ironia, consegui arrancá-las com as ferramentas que achei embaixo do tanque, que ficava na lateral da residência. Achei que teria que arrombar alguma das saídas. Foi mais fácil do que eu esperava.

            Entrei como se fosse fogo queimando aquele filho da puta. Naquele momento eu não tinha medo de nada. Peguei um saco plástico em cima da escrivaninha corroída e arrodiei o vão da sala. Junto a mim, além do saco, o pequeno canivete bem amolado, presente de papai. Com um pulo pouco aeróbico, subi numa espécie de armário, mas não era um armário. Não guardava nada lá. Era um móvel antigo, mas bem conservado, que ficava localizado de tal modo que eu o poderia ver entrando por qualquer umas das duas portas. Subi nesse troço e esperei por longas horas. No momento em que aquele verme maldito entrou, meu coração disparou como nunca havia imaginado que fosse acontecer. Mesmo assim mantive a calma. Esperei ele trancar a porta e antes que ele pudesse ascender a luz, dei um tiro em sua perna, apenas para feri-lo. Estava um tanto escuro e ele não podia imaginar de onde veio o tiro. Esperei para ver se ele sacaria um revólver. Quando vi que estava desarmado, desci vagarosamente de onde estava e ascendi a luz. O fitei em seus olhos trêmulos de medo e dor.  Ele, caído no chão, sangrando em seu tapete, teve o discernimento de não pedir misericórdia. Um bosta desses sabe que não merece perdão. Ajoelhei-me ao seu lado, dei mais um tiro, dessa vez na outra perna, sem trocar uma só palavra. Me levantei, chutei sua cabeça durante alguns segundos. Peguei o canivete e cortei seu pescoço. Eu merecia isso. Aquele desgraçado não foi morto por mim, foi morto pela minha honra. O saco plástico me serviu apenas para amarrar sua cabeça no pé da mesa da sala. Isso não mudou em nada o ocorrido, apenas me divertiu olhar praquela merda toda.
            Saí antes que alguém pudesse chegar, mas tive tempo de lavar minhas mãos ensangüentadas no tanque da casa. Subi novamente no pé de jambo. Agora eu já sentia a maldita dor nas mãos. Fiquei lá em cima por mais algum tempo, esperando que alguma pessoa tivesse ouvido algo e fosse tirar suas dúvidas. Ninguém apareceu naquela noite. Fui para casa novamente de madrugada. Papai estava acordado, do mesmo jeito das outras vezes, fumando seu cigarro de palha na mesma cadeira da cabeceira da mesa da cozinha. Quando viu minha chegada, me olhou nos olhos profundamente e isso foi o suficiente para saber o que tinha acontecido. Estendeu a mão para mim, eu lhe entreguei a arma. Pegou aquele revólver e se voltou em direção ao seu quarto.

            Depois de tudo, só pude me lembrar das palavras de Chico Lenço Preto e saber que quando me aconselhou a não desgraçar minha vida, disse, na verdade, para matar aquele desgraçado.

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