quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O Carteiro


O carteiro não tinha rotina. Nada o incomodava mais do que fazer sempre as mesmas coisas. Óbviamente não conseguia fugir às tarefas que colocam a coca-cola e a tv a cabo em casa. Fazia com gosto, aliás. Todos os dias acordava no mesmo horário, mas não fazia sua primeira refeição no mesmo lugar. Algum dia comia em casa, outro na padaria, outro na outra padaria, outro no boteco perto da agência. Havia dias de não comer também, muito embora isso lhe causasse estranha mudança de humor. Todos os dias ia para o trabalho, mas tinha dia que ia de ônibus, tinha dia que ia de bicicleta, tinha dia que ia a pé. Tinha dia que não ia trabalhar, mas isso só em finais de semana.

Sua tarefa básica era entregar correspondências a pé. Tem carteiro que anda de moto, mas ele andava a pé. Não era uma opção, algo que pudesse escolher. Era assim. Ele andava a pé, como tantos, não de moto, como outros tantos. Não se importava com isso e, na verdade, gostava. Andando ele tinha mais tempo para pensar, coisa que fazia em demasia. Andava e, a cada casa, refletia sobre as pessoas que lá residiam, tentantdo imaginar como seria a vida de cada uma delas. Criava conhecidos pelos caminhos que transitava e se sentia bem com isso. Nada poderia lhe tirar a vontade de ser um observador.

A sua vida lhe fazia, por falta de tempo, ir ao mercado aos domingos. Às vezes ia aos sábados, mas costumava ir aos domingos. Não era algo que odiava fazer, afinal ir ao supermercado comprar carne, derivados do leite e bebidadas alcoólicas para um solteirão fumante não poderia ser tão ruim. Não era casado, não tinha filhos, não tinha família. Comprava aquilo que o satisfazia e isso podia ser melhor do que possa parecer. Costumava comprar, sem exceção, bifes de chã, queijo tipo prato, iogurte do mais barato, cerveja, arroz Tio Jorge, feijão carioca e alguma leguminosa que lhe fazia vontade naquele momento. Frutas  lhe pareciam muito caras pelo custo-benefício. Uma maçã-verde a sete reais o quilo não lhe suava tentador. Ultimamente, diga-se de passagem, começou a comprar alcaparras, coisa que comeu há um tempo enorme, mas gostou. Atribui isso ao governo Lula, mas havia quem discordasse.

Em seus devaneios tolos, para citar Zé Ramalho, que lhe faziam viver, acabava por ficar de porre, seja por falta de inteligência, seja por falta do que fazer, seja por falta de viver. Essa história se repete muitas vezes na vida cotidiana de milhares de pessoas. Não digo que nosso protagonista tinha uma ânsia, uma vontade inenarrável de beber e continuar a fazer o que faz, digo apenas que tem coisas que acabam se tornando inerentes às pessoas. O se embreagar no final de semana fazia parte de sua vida e isso pode ser mais difícil de entender do que o aborto. Beber aos sábados e, vespertinamente, aos domingos, era algo tão bom e tão saudável para si que, com o passar dos dias, acaba convertendo isso em coisa boa, em coisa que constrói sua personalidade de carteiro concursado que gosta de cigarros.

Em suas andanças infindáveis pela cidade, via de tudo e tudo lhe parecia comum. Não se abismava com mais nada. Quando o inusitado vira algo cotidiano, ele deixa de ser inusitado: tudo é normatizado. Mendigos, ladrões, policiais, janelas, hot-dogs, prostitutas menores de idade, assaltos, cães ferozes, belas mulheres, futebol, fúria, nada disso poderia lhe causar estranheza ou alguma coisa diferente dentro do peito. Tudo isso ele tinha como o mundo. Apenas o mundo mostrando suas entranhas e, em contrapartida, seus dotes mais belos.

A camisa amarela com detalhes em azul e "gola polo" lhe incomodava sem precedentes. Aquela gola roçando seu pescoço suado em dia de sol quente lhe parecia o fim da picada, no entanto, como podemos ir reparando aos poucos, ele não contestava. Aliás, pensava que se a camisa fosse preta seria muito pior. O suor que escorre pelo seu corpo e molha sua camisa tinha que ser normatizado. É assim que a vida segue e é assim que ele vivia. Mas, por conta disso e dos pequenos prazeres que a vida acaba nos revelando, comprou um ar condicionado. Nada lhe parecia pior do que o suor na camisa, mas nada lhe parecia melhor do que, depois do trabalho, chegar em casa e ligar o ar condicionado. Soube fazer do sofrimento diurno um prazer sem limites, ainda mais na segunda-feira, depois das compras de domingo, quando a cerveja que sobrou colocava a cereja no bolo.

Sua vida seguia o rumo que queria. Nada lhe faltava, apesar de não viver com extravagâncias. Caminhando pela rua que dá acesso à agência, vê algo que julgou diferente, a saber, uma linda mulher. Ele, pelas andanças que faz na cidade, já tinha visto muitas mulheres bonitas, mas aquela era linda. Mulheres bonitas existem milhões pelo mundo adentro, mas a "linda" é aquela que mexe de verdade. Aquela mexeu. Seus olhos fitavam o caminhar da moça, entretidos naquelas pernas que julgou serem as mais perfeitas que Deus ousou fabricar.
 Os cabelos morenos escorridos, tocando a tez de sua face formosa lhe fizeram sentir o inusitado. Sua mão direita por pouco não deixa cair o cigarro com o esbarrão de um transeunte que, sem que ele ao menos sentisse, lhe trombara. A moça caminha até a agência dos Correios e é o que ele precisava para achar que o destino de ambos estava traçado. Joga o cigarro no chão, coisa que geralmente não fazia, e se dirige, a passos largos, para a agência.

Há muito o inusitado não lhe acontecia. Isso é, na maior parte da vezes, ruim. Viver sem algo que não se espera que aconteça soa meio chato. Acho que a última vez que o inusitado lhe aconteceu foi no título brasileiro do Botafogo, em 95. Ele não esperava que aquilo fosse acontecer realmente, mas aconteceu e foi, provavelmente, uma coisa muito mais gostosa de desfrutar. Chega na agência ainda pasmo. Entra e vê o que julga ser a perfeição conversando com seu amigo, talvez o mais próximo dos poucos amigos que tem, sobre algum assunto que não conseguiu decifrar. Logo depois, um abraço acalentador dos dois acontece e, enfim, a moça sai da agência sob o olhar perseguidor do nosso carteiro, que não esboça qualquer reação. Seu amigo o chama para mais perto e pergunta se viu a moça que acabara de sair. Com o sinal de positivo, o homem lhe conta, com os olhos cheios de lágrima, que aquela é a sua única filha. Conta também que ela foi até lá para dar a notícia que acabara de saber: estava grávida. O inusitado lhe encontra novamente.

O carteiro, após recebida a notícia e ter dado os parabéns, devolve sua sacola vazia depois do dia de trabalho e, como de costume, vai para casa. Naquele dia decidiu ir a pé. Não é de se esperar que alguém se apaixone a primeira vista, mas pode acontecer e, como vimos, acontece. Anda até em casa pensando em tudo que havia acontecido. A moça não saiu de sua cabeça. Aquele inusitado não poderia ser normatizado por ele. Nunca. Ele se dá conta que existem momentos em que não se quer pensar em nada e que existem momentos em que você resume sua vida em pensar, em refletir. O que acaba ficando claro é que existem momentos, e que pensar e não pensar se completam. O não pensar muitas vezes pode ser reconfortante, assim como a recíproca é verdadeira, mas não pensar é complicado. Quando o não pensar se torna algo de importância, é sinal de que isso que se faz questão de não pensar tem a maior importância. Não se pensa por querer pensar e, assim, se pensa. Desse modo, tentando não pensar naquilo que não saía de sua cabeça, encontra uma justificativa para beber aos sábados e nas tardes de domingo.

Um comentário:

  1. Moleque, voamo roteirizar essa parada? Acho que dá um curta muito bom... sério mesmo...

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